Sunday, November 20, 2005




fechou os olhos. não conseguia adormecer. desejava conhecer o sono, senti-lo entranhar-se e saber como é que conseguia apoderar-se dele e fazê-lo esquecer que existia. matá-lo dia após dia nascendo-o todas as manhãs. tentou concentrar-se no vazio. e viu o escuro. dois escuros. conseguia distinguir o preto das pálpebras que lhe fechavam os olhos da inexistência que o cegava. e quis adormecer. mas a consciência e o sono há muito romperam os laços. o sono tem medo dela, ela fá-lo sentir-se insignificante e irreal. e então o rapaz não adormecia, consciente da sua vontade de adormecer. até que se cansou. e a sua consciência adormeceu, acordando o sono que foi chegando em bicos de pés.
só partiu na manhã seguinte.

e é isto que acontece. todos, todos os dias. perdemos a consciência. [morremos?] e não conseguimos encontrá-la, não conseguimos evitar perdê-la. e em que momento perdemos a consciência se quando a perdemos deviamos estar conscientes que a estávamos a perder e não a sentimos perder-se? e como podemos guardar alguma coisa na vida se perdemos aquilo que está mais entranhado em nós? onde ficam as caixinhas de memórias num corpo que nem sabe perguntar-se a identidade?

e todos os dias vivemos duas vezes. duas vidas. quase incompatíveis. raramente nos lembramos da vida que sonhámos. raramente sonhamos a vida que vivemos. qual é que é real? a que traz mais dor? porquê? aquela em que se morre? sim... nos sonhos não se morre.
e depois de morrer? voltamos a acordar? a nascer? como se a manhã se espreguiçasse mais uma vez? e onde? no mesmo mundo? noutro completamente diferente? na pele de uma cegonha? de uma estrela? e depois?... não nos lembramos da vida que fomos ou vamos lembrar-nos de todas e esta é a primeira?

e no outro acordar... será tudo assim, tão maravilhosamente inconcreto?

[vou dormir... já não devo estar totalmente consciente...]

Wednesday, November 16, 2005


Sou apaixonada pela indefinição.
pelo trapézio que desequilibra a razão
sinto-a e tremo-a e
morro aqui
ébria do que não vivi
arrepio-me e sou só eu
guardo o que tenho porque é meu.
e quando me sinto de fora
há um tempo que se demora
em que saboreio o sentido
do que não foi e podia ter sido
e no caminhar do horizonte distante
vou errando tal fugaz viajante
não sabendo quem sou...
sonhando apenas para onde vou.

E abraço-me em segredo
Embriagada neste medo
De um dia acabar assim
Ser a única abraçada a mim

amo a indefinição.
por que é que não me amo?

Sunday, November 13, 2005


Aproximou-se dela e tocou-lhe de mansinho no ombro.
Ela estremeceu.
Chamou o seu nome baixinho e perguntou-lhe como se sentia.
Ela não respondeu.
Brincou com o seu cabelo e deu-lhe beijos na orelha.
Ela não se moveu.
Parou.
Esperou.
Esperou mais.
Ela voltou-se hesitante. Olhos inchados, sentidos esgotados.
Ele deu-lhe um beijo aqui.
Outro ali.
Ela chorou.
Ele cantou.
Ela sorriu. Sorriso triste, que na alma não existe.
Abraçou-a. Amou-a.
Mesmo ali, sem segredos, sem medos.
E chegou o avião.
Ela disse adeus com a mão.
E partiu.
Nunca mais o viu.
Não chorou mais. Não voltou ao cais.
Pouco sofreu. Depressa esqueceu.
Ele ficou.
E nunca mais amou.

Friday, November 11, 2005


Apertou o cachecol e fechou a porta de casa para ir comprar o bolo. A noite estava ja iluminada e disfarçara-se de carteirista roubando-lhe sorrateiramente o calor. Ia atravessar a estrada mas algo o fez voltar-se. Olhou pela janela e lá estava ela, em bicos de pés a enfeitar a árvore de Natal.
Nunca mais esqueceria o dia em que a conhecera. Era um dia de inverno como aquele e ele estava a estudar no café da esquina. Ela entrara a tremer toda encharcada e olhara à sua volta, mas não havia mesas livres. Como era bonita... Ele sorrira-lhe e oferecera-lhe um lugar na sua mesa que ela aceitou agradecida. Não trocaram mais palavras, não foi preciso.
E agora, mesmo depois de tantos anos passados ela continuava a ser tudo o que ele queria. E ele tinha tanto orgulho nela, no que se tornara, na sorte que tinha por a ter conhecido. Continuou a aprecia-la pela janela e assistiu à entrada dos miúdos na sala. Estavam tão grandes e sempre que os via tinha uma vontade imensa de os abraçar, tão parecidos eram com a mãe. Ele amava-os, como a amava a ela. Subitamente, a filha reparou nele à janela e disse-lhe adeus com a mão pequenina.
- Mãe, olha o vizinho.
E ela foi à janela, aproximou-se dele e fechou as cortinas bruscamente.
E ele foi-se embora, triste, despedindo-se de um futuro que nunca fora o seu.

Thursday, November 03, 2005


sinto.
não percebo bem o quê. não percebo a razão.
mas vem devagar, de mansinho.
e toma conta de mim.
é um sopro, umas cocegas cá no fundo.
um arrepio, uma luz.
e sei. sei a verdade.
sei que sinto,
mesmo não sabendo como consigo sentir tanto.
e isso arrasta-me, leva-me, solta-me.
e o coração bate muito.
e gosto tanto deste sentir.
sentir-te, sentir por ti.
porque sinto.

mas sinto muito...

não saber ser,
ensinar-te a ser,
sentir-te e sentir que me sentes,
porque sentir te acalma, depois de perderes os sentidos.

e não me solto, não me sonho
porque sei que sentes que te voltas
e o comboio partiu sem ti.
e ficaste. sozinha.
sem saber o que sentir.
sem saber sequer sentir.

e eu sinto tanto.
e quero que saibas,
que não sei qual é o meu lugar.
mas que preciso de estar aqui.
porque preciso que vivas.
porque preciso que sintas.
que te sintas bem assim.
e que sintas que te amo.
e que te sinto tanto.
em mim.

continuação

... também sei gostar da chuva. também sei voltar ao meu café e saborear cada momento que engulo com prazer enquanto estou assim, protegida. também sei que se voltasse atrás não seria o mesmo, porque seria o presente e não o passado. e é o passado que nos persegue, do presente não sentimos falta.

talvez depois a chuva pare com a violência com que começou. talvez venha o sol e derreta a neblina que nos impedia de ver. talvez aí fiquemos transparentes. mas não o somos afinal? ou não gostavamos de ser? agora o meu mar acalmou, talvez as gaivotas tenham fugido da terra. era o que eu faria...
se pudesse voar.
se me pudesse definir.



Sentei-me no café, cheio de estranhos como eu. As nuvens lá fora tapavam a solidão daqueles que fogem da tempestade e se escondem da vida, sem um coração para se abrigar nem campos abertos para correr. E eu bebia o meu café, devagar, sentindo o calor que nem ele me podia oferecer.
Olhei para a janela nublada e vi muito para além do que havia para ver. Vi a rotina em cada gota que cantava cronologicamente no vidro da janela, lembrei todas as rotinas que deixaram de o ser. Senti os sabores emaranhados de um verão diferente, despedi-me de todos os comboios em que fui e não voltei. E o tempo foi morrendo, como todos os passados que não conseguimos agarrar. E reparei em mim. Fui a única que não perdi. E queria tanto tanto...

voltar àquele trilho, àquela noite, àquele sabor, àquele abraço.
queria tanto deixar de ser indefinida.