Tuesday, August 14, 2007


Levantas-te sorrindo e estendes o gesto para me afastar a cadeira. Um calafrio passeia-me a espinha e descobre-me o corpo enquanto me sento. Rasgo-to de volta. Por momentos as palavras são-me imunes, leio-te as feições, as expressões, não ouço o que me dizes.

Ouço um tempo a preto e branco, figuras no jardim. Ouço-te enquanto passeias a mão dela, a prova de que o amor pode ser intemporal. Ouço-te levantar o chapéu em gesto de cumprimento, sorrir, sempre. Aceno levemente a cabeça e faz mais sentido o que dizes com o brilho do olhar. Sinto-me na tua cena, vestidos compridos e chapéus de chuva para o sol. Não te ouço a luta de classes, de igualdade de direitos, não te ouço as poupanças. Mas sinto a tua história de valores, a falta de razões para nos desunirmos. Sinto-te a partilha, a força de um abraço na tempestade, o tempo em que eramos nós contra a injustiça, e não os injustos no mundo. Sinto as tuas caminhadas pela rua, por não haver mais nada. Sinto o teu passo no manto de estrelas, o ar puro, longe de trânsito, do fumo que nos mata a vida e a alegria de viver. Sinto o teu sonho, de subir montanhas e passar a noite, em segredo, em paixão. e invejo-te.


O brilho no olhar muda com os anos, com a desexperiência. Tal como o sonho que vai nas costas do adolescente e tudo o que sobra dele no idoso é uma cifose insuportável. Os valores nascem e perdem-se com as folhas do Outono. A incompatibilidade da vida e da utopia levam-nos pelo caminho errado. O trilho dos valores é quase sempre o impossível de realizar no nosso contexto, o atalho cheio de silvas. E as pessoas acomodam-se. Na escolha, nas leis, na aplicabilidade do dia a dia. Porque é sempre "muito bonito falar" e "a realidade é diferente". E no fim não lutamos pela utopia, lutamos pela realidade. E o mundo gira e a curva das aspirações cai em flecha.


Não sonhem pelo que podem ter, sonhem com o que vos leva para longe, na vida, no amor. Talvez mais tarde o peso nas costas relembre as montanhas, o sol do que foram e seja mais fácil de suportar.


Obrigada pelo bocadinho de sépia, por te aproximares do que resta com a força com que o mundo vos uniu: levo nas costas um bocadinho do vosso quadro.

Monday, August 13, 2007


Não há contadores de histórias como os que as têm marcadas na pele. Nesses o passado enrola-se nos olhos, no sorriso, por todo o lado. E nem a vontade, nem os cremes milagrosos nem o elixir são capazes de o apagar. São corpos que o tempo acoxeou, paixões que o relógio esfriou. E em cada respirar há uma lição de vida que transparece no gesto, na coordenação do peito que sobe e desce, como tudo.

Não é fácil seguir pelo lado certo da estrada, nos sentimentos. Onde há duas pessoas há um choque, não importa a experiência ou os anos que se acumula de caminho. Em cada choque é precisa uma força sobrenatural para amortecer a queda sem amolegar o que se construiu por dentro. É isso que faz a diferença, nas relações, na vida: a capacidade de investir quando vale a pena.

Era tudo isto que passeava na sua cabeça naquele entardecer de verão. Doíam-lhe as pernas dobradas, cansadas da posição, da rotina. O horizonte adivinhava-se para lá da maresia, impenetrável. Tudo tinha sido um mar de rosas, até agora. O casamento, o travo do café entre lençóis, a viagem. Os anos a envelhecer junto a ela, a sua mão macia. Os segredos, as cumplicidades. Agora discutiam a toda a hora, o ciúme doentio, a vontade exagerada de se terem, de se perderem, a desilusão, o desinteresse, a desistência. O futuro é traiçoeiro. O que traz de bom torna rotina, o que traz de mau desespero. E o facto de as pessoas se habituarem a ele troca-lhes as prioridades. Então relembram o encanto inicial, a memória embrulha-lhes o pesadelo. Depois aparece alguém, um outro alguém. Tão simples, tão atraente. E assim roda o mundo, o simples torna-se complicado, sempre. Tornam-no as pessoas, a vida. Não há metades de laranja, meias luas. Há o amor e o que sobra do amor, mais raro, mais difícil de valorizar. Se soubermos que nenhuma saída nos pode salvar eternamente, talvez sejamos capazes de olhar para trás e fazer as escolhas certas para a frente. Tudo na vida se torna complicado a certo ponto. Enquanto houver duas pessoas a remar para o mesmo lado, é possivel. Foi assim que ele se levantou do penhasco e voltou para aquela que tinha sido sempre a sua casa.


Amor paga-se com amor, sempre.

Tuesday, August 07, 2007

Noite entrecortada de caminhantes e ruas iluminadas pela solidão. A luz fascina-me a cidade, apetece conhecer cada pedra, a memória de cada esquina.

Na calçada histórias soltas entrenham-se pelo roçar ténue do meu e do teu braço que acompanham o caminho em sentido contrário. Nas entrelinhas do sorriso adivinha-se um coxear ligeiro de quem tem muito para dar e aprendeu a esquecer como. A porta abre-se amena, aconchegante. No ar a viola chama sentimentos que nos entram por dentro, falam-nos de cumplicidades antigas e acalmam-nos o coração, tal maestro que nos condiz as linguagens.

Gosto de viajar pelos teus momentos, ser diferente quandos baralhas as tuas linhas nas minhas pre-definições. E as horas passam como o nervosismo, enquanto re-aprendo os teus gestos, a subtileza com que te deitas para fora ou passas a mão no cabelo.

Só se aprende com as histórias encarnadas na primeira pessoa. Um desabafo vale mais que mil personagens estranhas perdidas em coincidências, mais que mil discursos indirectos.
E contigo a vida embrulha-se tão intensamente que apetece embrulhar com ela, aprender com ela, ser contigo.

Da noite restou o sopro de saudade, da vontade de lutar por nós. Anseio-te no caminho.