Sunday, November 09, 2008


Bebes a última gota de um copo sem fundo, vira-lo ao contrário na esperança de o ver chover. Alarga-se a terra para te abrigar, sentes-te engulir. Os ponteiros rodam do avesso, arrastam-te num futuro que não queres repetir. Cantas. Passos largos pela rua, ombros tensos num olhar serrado. O que procuras de tão grande? De que te escondes de tão assustador? Os medos agarram-te, desembaraçam-te os gestos. Não sabes onde estão, só que estão por todo o lado. Passas na passadeira, aquela que construíram para os outros peões que não tu, e perguntas-te como será passar uma vez com o semáforo verde, como se todos os teus caminhos não fossem proibidos por bloqueadores carrancudos. Sentas-te no banco, choras o amanhecer. Choro contigo, quero esverdear todos os sonhos da tua vida. Por favor, não te deixes vencer.

Saturday, October 18, 2008

Encostas-te ao mundo como se estivesse a abanar, levas peças antigas na esperança de te encontrar. E rasgas o olhar triste por uma importância de outrora, como se a vida te despejasse e se fosse embora. Esperas a viagem que te leve ao centro, espalhas-te pela calçada do que és por dentro. E dás enquanto tiras o que te está a sobrar, anseias enquanto o autocarro não pode chegar. Apertas o sorriso e deixas magia, despedes-te e no teu corpo caminha alegria. Tens tantas histórias para semear por aí, e incrivelmente chove de mais em ti. Mas o segredo propaga-se ao anoitecer, nenhuma vitória se deixa vencer. E hoje espalho-te pela minha utopia, e escrevo os teus gestos em contos de maresia, para que os teus passos possam sempre ecoar e a tua solidão não te roube o luar.

Thursday, January 31, 2008


Senta-te ao meu colo, vamos brincar. Hoje é o meu dia de te levar a galope por aí. A seabra abana ao longe, sinto-te no vento. Vamos pelos campos descobrir o seu segredo, o que nos sussurra ao cair da noite. Chego os joelhos ao peito e abraço-os, tremo de frio e de tranquilidade. No horizonte pintam-se traços rosados, como a minha vida. Entras-me pelo colarinho da camisola, passo ante passo. Viras-me do avesso a sítios onde nunca tinha ido. Sinto-me infinitamente redutora, sem sentido, sem rumo. Talvez como uma gota frágil na praia, igual a tantas outras, que como não se vê de fora nem se conhece por dentro não percebe a importância do mar. Não sei como cheguei a este lugar e como não tinha chegado antes. Mostras-me que tenho que me entregar à nossa brincadeira, ir atrás do que agita as ondas. E trazes mais amigos, conquistadores como nós dos sonhos do mundo. E eles mostram-nos outras brincadeiras e deitam cá para fora outros campos, outras seabras.

Fecho os olhos e sinto-nos mais que nunca. Sinto que tens uma prenda para me dar e que ataste o laço ao meu pulso. Em cada momento vai-se desfazendo, principalmente quando caio e esmurro o joelho. E a pouco e pouco desliza o embrulho e liberta o que tem por dentro. E em tantas alturas sinto-me tão perto do desfeche só para descobrir que dentro daquele há tantos outros laços como nas bonecas russas na prateleira da avó. Mas não há nada como este nosso jogo, em que procuro as tuas respostas porque sabes que são as minhas. E quase me apetece voltar à praia ou ao lugar em que o peito abraçou as pernas e esconder o nosso embrulho na areia ou por baixo da terra. E assim podemos brincar para sempre.

E talvez descobrir que não há vitória ou derrota que supere o sabor do caminho.

Tuesday, August 14, 2007


Levantas-te sorrindo e estendes o gesto para me afastar a cadeira. Um calafrio passeia-me a espinha e descobre-me o corpo enquanto me sento. Rasgo-to de volta. Por momentos as palavras são-me imunes, leio-te as feições, as expressões, não ouço o que me dizes.

Ouço um tempo a preto e branco, figuras no jardim. Ouço-te enquanto passeias a mão dela, a prova de que o amor pode ser intemporal. Ouço-te levantar o chapéu em gesto de cumprimento, sorrir, sempre. Aceno levemente a cabeça e faz mais sentido o que dizes com o brilho do olhar. Sinto-me na tua cena, vestidos compridos e chapéus de chuva para o sol. Não te ouço a luta de classes, de igualdade de direitos, não te ouço as poupanças. Mas sinto a tua história de valores, a falta de razões para nos desunirmos. Sinto-te a partilha, a força de um abraço na tempestade, o tempo em que eramos nós contra a injustiça, e não os injustos no mundo. Sinto as tuas caminhadas pela rua, por não haver mais nada. Sinto o teu passo no manto de estrelas, o ar puro, longe de trânsito, do fumo que nos mata a vida e a alegria de viver. Sinto o teu sonho, de subir montanhas e passar a noite, em segredo, em paixão. e invejo-te.


O brilho no olhar muda com os anos, com a desexperiência. Tal como o sonho que vai nas costas do adolescente e tudo o que sobra dele no idoso é uma cifose insuportável. Os valores nascem e perdem-se com as folhas do Outono. A incompatibilidade da vida e da utopia levam-nos pelo caminho errado. O trilho dos valores é quase sempre o impossível de realizar no nosso contexto, o atalho cheio de silvas. E as pessoas acomodam-se. Na escolha, nas leis, na aplicabilidade do dia a dia. Porque é sempre "muito bonito falar" e "a realidade é diferente". E no fim não lutamos pela utopia, lutamos pela realidade. E o mundo gira e a curva das aspirações cai em flecha.


Não sonhem pelo que podem ter, sonhem com o que vos leva para longe, na vida, no amor. Talvez mais tarde o peso nas costas relembre as montanhas, o sol do que foram e seja mais fácil de suportar.


Obrigada pelo bocadinho de sépia, por te aproximares do que resta com a força com que o mundo vos uniu: levo nas costas um bocadinho do vosso quadro.

Monday, August 13, 2007


Não há contadores de histórias como os que as têm marcadas na pele. Nesses o passado enrola-se nos olhos, no sorriso, por todo o lado. E nem a vontade, nem os cremes milagrosos nem o elixir são capazes de o apagar. São corpos que o tempo acoxeou, paixões que o relógio esfriou. E em cada respirar há uma lição de vida que transparece no gesto, na coordenação do peito que sobe e desce, como tudo.

Não é fácil seguir pelo lado certo da estrada, nos sentimentos. Onde há duas pessoas há um choque, não importa a experiência ou os anos que se acumula de caminho. Em cada choque é precisa uma força sobrenatural para amortecer a queda sem amolegar o que se construiu por dentro. É isso que faz a diferença, nas relações, na vida: a capacidade de investir quando vale a pena.

Era tudo isto que passeava na sua cabeça naquele entardecer de verão. Doíam-lhe as pernas dobradas, cansadas da posição, da rotina. O horizonte adivinhava-se para lá da maresia, impenetrável. Tudo tinha sido um mar de rosas, até agora. O casamento, o travo do café entre lençóis, a viagem. Os anos a envelhecer junto a ela, a sua mão macia. Os segredos, as cumplicidades. Agora discutiam a toda a hora, o ciúme doentio, a vontade exagerada de se terem, de se perderem, a desilusão, o desinteresse, a desistência. O futuro é traiçoeiro. O que traz de bom torna rotina, o que traz de mau desespero. E o facto de as pessoas se habituarem a ele troca-lhes as prioridades. Então relembram o encanto inicial, a memória embrulha-lhes o pesadelo. Depois aparece alguém, um outro alguém. Tão simples, tão atraente. E assim roda o mundo, o simples torna-se complicado, sempre. Tornam-no as pessoas, a vida. Não há metades de laranja, meias luas. Há o amor e o que sobra do amor, mais raro, mais difícil de valorizar. Se soubermos que nenhuma saída nos pode salvar eternamente, talvez sejamos capazes de olhar para trás e fazer as escolhas certas para a frente. Tudo na vida se torna complicado a certo ponto. Enquanto houver duas pessoas a remar para o mesmo lado, é possivel. Foi assim que ele se levantou do penhasco e voltou para aquela que tinha sido sempre a sua casa.


Amor paga-se com amor, sempre.

Tuesday, August 07, 2007

Noite entrecortada de caminhantes e ruas iluminadas pela solidão. A luz fascina-me a cidade, apetece conhecer cada pedra, a memória de cada esquina.

Na calçada histórias soltas entrenham-se pelo roçar ténue do meu e do teu braço que acompanham o caminho em sentido contrário. Nas entrelinhas do sorriso adivinha-se um coxear ligeiro de quem tem muito para dar e aprendeu a esquecer como. A porta abre-se amena, aconchegante. No ar a viola chama sentimentos que nos entram por dentro, falam-nos de cumplicidades antigas e acalmam-nos o coração, tal maestro que nos condiz as linguagens.

Gosto de viajar pelos teus momentos, ser diferente quandos baralhas as tuas linhas nas minhas pre-definições. E as horas passam como o nervosismo, enquanto re-aprendo os teus gestos, a subtileza com que te deitas para fora ou passas a mão no cabelo.

Só se aprende com as histórias encarnadas na primeira pessoa. Um desabafo vale mais que mil personagens estranhas perdidas em coincidências, mais que mil discursos indirectos.
E contigo a vida embrulha-se tão intensamente que apetece embrulhar com ela, aprender com ela, ser contigo.

Da noite restou o sopro de saudade, da vontade de lutar por nós. Anseio-te no caminho.

Wednesday, February 07, 2007

sentei-me no chão a teu lado, enquanto o mundo anoitecia lá fora. olhei-te e segui os pirilampos que guardas no olhar, à procura da entrada para a minha saída, como tantas outras vezes. subi a tua escadaria e procurei o sentido no avesso de mais um dia. descansei-me em ti e devagar segredámos passados, suspirámos desejos rasgados do peito e reunimos as tempestades na tua e na minha mão soprando ao mesmo tempo e sorrindo para as ver desaparecer.

aprendi que na noite mais escura, quanto maior é o que temos maior o vazio que vemos. descobri que é dificil andar para a frente quando custa olhar para trás. que no dia mais frio o lume não acende e é tão fácil fechar os olhos e esperar pelo verão. mas ao procurar dentro do que somos, encontramos um momento em que apetece mudar, transformar o medo em vontade de vencer e sentir que depende de nós mais do que de qualquer outro alguém.

e por isso me sento a teu lado sempre que o mundo anoitece lá fora.
dou-te mais um pouquinho de nada para construirmos aquele tudo e surge o breve instante de podermos ser iguais a nós, largar as defesas com que a vida nos prende e adormecer o medo num abraço fechado porque no nosso mundo não temos receio de ficar.
o gostar não tem limites nem justificação.
mas é este gostar que nos conforta os sentidos e apaga o pó da tua e da minha alma, e sem querer há uma nova vontade de mudar no sorriso que nos adormece, para que o acordar nos lembre que somos o que queremos fazer de nós.

e incrivelmente em todos os dias que se viram do avesso, tens sempre mais um pouquinho de nada para partilhar e mais um vazio para me preencher.

é bom embrulhar o fim do dia em cumplicidade.
mas melhor é desembrulhá-lo na manhã seguinte e saltar da cama com um sorriso no coração por descobrir que não és só um sonho.