Levantas-te sorrindo e estendes o gesto para me afastar a cadeira. Um calafrio passeia-me a espinha e descobre-me o corpo enquanto me sento. Rasgo-to de volta. Por momentos as palavras são-me imunes, leio-te as feições, as expressões, não ouço o que me dizes.
Ouço um tempo a preto e branco, figuras no jardim. Ouço-te enquanto passeias a mão dela, a prova de que o amor pode ser intemporal. Ouço-te levantar o chapéu em gesto de cumprimento, sorrir, sempre. Aceno levemente a cabeça e faz mais sentido o que dizes com o brilho do olhar. Sinto-me na tua cena, vestidos compridos e chapéus de chuva para o sol. Não te ouço a luta de classes, de igualdade de direitos, não te ouço as poupanças. Mas sinto a tua história de valores, a falta de razões para nos desunirmos. Sinto-te a partilha, a força de um abraço na tempestade, o tempo em que eramos nós contra a injustiça, e não os injustos no mundo. Sinto as tuas caminhadas pela rua, por não haver mais nada. Sinto o teu passo no manto de estrelas, o ar puro, longe de trânsito, do fumo que nos mata a vida e a alegria de viver. Sinto o teu sonho, de subir montanhas e passar a noite, em segredo, em paixão. e invejo-te.
O brilho no olhar muda com os anos, com a desexperiência. Tal como o sonho que vai nas costas do adolescente e tudo o que sobra dele no idoso é uma cifose insuportável. Os valores nascem e perdem-se com as folhas do Outono. A incompatibilidade da vida e da utopia levam-nos pelo caminho errado. O trilho dos valores é quase sempre o impossível de realizar no nosso contexto, o atalho cheio de silvas. E as pessoas acomodam-se. Na escolha, nas leis, na aplicabilidade do dia a dia. Porque é sempre "muito bonito falar" e "a realidade é diferente". E no fim não lutamos pela utopia, lutamos pela realidade. E o mundo gira e a curva das aspirações cai em flecha.
Não sonhem pelo que podem ter, sonhem com o que vos leva para longe, na vida, no amor. Talvez mais tarde o peso nas costas relembre as montanhas, o sol do que foram e seja mais fácil de suportar.
Obrigada pelo bocadinho de sépia, por te aproximares do que resta com a força com que o mundo vos uniu: levo nas costas um bocadinho do vosso quadro.